No dia 22 de dezembro, a Havaianas lançou uma campanha publicitária estrelada por Fernanda Torres, com a frase, resumidamente: “Não vamos começar o ano com o pé direito. Vamos começar com os dois pés.” A controvérsia se instalou a partir da interpretação de alguns político e influenciadores da direita de que, em 2026, “não deveríamos entrar com a direita”, associando a mensagem a um posicionamento político e não a superstição de entrar com o “pé direito” para dar sorte.

Esse entendimento ganhou força pelo contexto recente da atriz, que protagonizou o filme Ainda Estou Aqui, no qual interpreta a matriarca de uma família vítima da ditadura militar brasileira. A partir disso, setores da direita passaram a defender boicote à marca, acusando-a de alinhamento ideológico à esquerda. Trata-se de uma polarização, em grande medida, superficial e reativa. No entanto, é igualmente ingênuo ignorar que, hoje, a comunicação é interpretada sob uma lente de intencionalidade constante. Existe um problema institucional recorrente: a comunicação ainda não é tratada com a seriedade estratégica que merece dentro das empresas, quando, na prática, ela é um dos principais vetores de cultura, valores e posicionamento, seja corporativo, seja de figuras públicas.
Do ponto de vista técnico e metodológico, a publicidade opera a partir de princípios consolidados tanto pela história da disciplina quanto por evidências oriundas da neurociência cognitiva e do comportamento do consumidor. Um desses princípios fundamentais é a priorização de construções afirmativas, orientadas para ação e ganho, evitando estruturas negativas. Ao utilizar a formulação “não começar com o pé direito”, a mensagem ativa um gatilho de negação que, do ponto de vista neurológico, exige um esforço cognitivo adicional para ser processado. Estudos em neurociência demonstram que o cérebro humano não processa negações de forma direta; ele primeiro constrói a imagem mental da ação negada para, em seguida, tentar suprimi-la, o que aumenta a carga cognitiva e reduz a fluidez da mensagem. Ao iniciar uma campanha com uma negação, a comunicação rompe esse fluxo neurocognitivo, deslocando a mensagem de um território de fluidez para um campo de resistência simbólica. Em um ambiente de alta sensibilidade política e informacional, essa fricção inicial amplia o risco de interpretações desviadas, reduz a eficácia persuasiva e expõe a marca a leituras que extrapolam o objetivo original da campanha. Em termos técnicos, não se trata apenas de um erro semântico, mas de uma falha na arquitetura cognitiva da mensagem, que compromete a performance comunicacional e amplifica ruídos no ecossistema social e mercadológico.
As redes sociais reagiram imediatamente, o perfil oficial da havaianas ganhou cerca de 150 mil seguidores, mas olhando como seguidores não refletem em vendas, o mercado reagiu de forma quase imediata, evidenciando como ruídos de comunicação e crises de percepção podem se traduzir rapidamente em impactos financeiros concretos. Ao longo do dia, a repercussão negativa da campanha influenciou o comportamento dos investidores, resultando em uma oscilação relevante no valor das ações da Alpargatas, com perdas que, em determinado momento, se aproximaram da marca de R$ 200 milhões em valor de mercado. Esse movimento reflete menos uma avaliação estrutural da empresa e mais uma resposta à incerteza gerada pelo ambiente reputacional. Em paralelo, nas redes sociais, houve um resgate comparativo de uma campanha veiculada em 2014, na qual Romário enviava simbolicamente o “pé esquerdo” para Maradona, levantando o questionamento sobre por que aquela ação foi amplamente aceita no passado enquanto, no presente, uma mensagem de natureza semelhante gera forte rejeição. Essa comparação, embora recorrente, desconsidera as mudanças de contexto, de sensibilidade social e de leitura simbólica que hoje orientam tanto o comportamento do público quanto as decisões do mercado.

A resposta está no arquétipo de influência que cada figura pública representa em determinado momento histórico. Em 2014, Romário era percebido majoritariamente como um herói nacional do futebol, um ícone esportivo associado a conquistas coletivas, orgulho nacional e entretenimento, com baixa carga ideológica atribuída à sua imagem pública naquele contexto. Sua participação em uma campanha publicitária era interpretada sob a ótica do esporte e da rivalidade simbólica, não da política. Em contrapartida, no cenário atual, Romário é amplamente reconhecido como senador e agente político, o que ressignifica completamente qualquer mensagem associada à sua imagem. Já Fernanda Torres, em 2025, carrega consigo a simbologia recente de uma obra cinematográfica diretamente conectada a um período sensível da história política brasileira, o que faz com que sua presença em uma campanha publicitária seja inevitavelmente lida à luz desse repertório recente. Nesse contexto, a influência deixa de ser apenas artística ou cultural e passa a operar no campo simbólico e político, intensificando interpretações, reações e disputas de narrativa.
Contexto importa porque é ele que define a leitura simbólica de qualquer mensagem. Valores não são estáticos; eles evoluem conforme o tempo, o ambiente social e o estágio político de uma sociedade. Da mesma forma, os arquétipos públicos se transformam: pessoas, marcas e instituições passam a representar significados distintos ao longo dos anos, de acordo com suas trajetórias, escolhas e associações recentes. Por isso, não é metodologicamente correto analisar ações do presente utilizando referências do passado, desconsiderando as mudanças de percepção coletiva e de sensibilidade social. Ao mesmo tempo, o ambiente digital potencializa leituras extremadas, levando à polarização automática de qualquer conteúdo, muitas vezes sem análise crítica. Ainda assim, assumir que toda comunicação é neutra também é um erro estratégico. Comunicação é construção de sentido, carrega intenção, valores e posicionamento (explícitos ou implícitos) e deve ser analisada com racionalidade, contexto e responsabilidade interpretativa.
A reflexão final é simples e estratégica: não tome a narrativa que chega até você como verdade absoluta. Evite polarizações vazias. Mas também não seja ingênuo a ponto de não se perguntar: houve, ou não, intencionalidade por trás da mensagem?
