Quando “vira moda”, o que pega é o estigma, não a inclusão

Quando “vira moda”, o que pega é o estigma, não a inclusão

Por D'Nascimento

Precisamos partir do nosso contexto…

Nos últimos anos, testemunhamos um aumento significativo na visibilidade e no diagnóstico de condições neurodivergentes, como o Autismo e o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Essa mudança pode ser atribuída a uma combinação de fatores, incluindo avanços na medicina diagnóstica, maior conscientização pública e mudanças nas atitudes sociais em relação à saúde mental e à neurodiversidade. Paradoxalmente, enquanto a visibilidade dessas condições cresceu, o mesmo ocorreu com os estigmas a eles associados. Este fenômeno sugere uma desconexão preocupante entre o aumento do reconhecimento e a efetiva inclusão e compreensão das pessoas neurodivergentes.

A expansão do diagnóstico e da conscientização, embora positiva em muitos aspectos, tem sido acompanhada por uma proliferação de estereótipos e mal-entendidos. Esses estigmas se manifestam de várias formas, desde concepções errôneas sobre as capacidades das pessoas autistas e com TDAH até a romantização ou patologização excessiva de suas experiências. Em vez de abrir caminhos para a inclusão e aceitação, a popularização dessas condições muitas vezes reforça barreiras sociais e emocionais, perpetuando um ciclo de exclusão e marginalização.

A minha tese – até o momento – é que, apesar da crescente visibilidade do Autismo e do TDAH, a sociedade falha frequentemente em aproveitar essa conscientização para promover uma verdadeira inclusão e compreensão. Em vez de avançar em direção a um mundo mais acolhedor para as pessoas neurodivergentes, os estigmas e preconceitos arraigados continuam a obscurecer as realidades vividas por esses indivíduos, dificultando seu acesso a oportunidades iguais e a uma qualidade de vida justa. Ao explorar as raízes e repercussões desses estigmas, busco não apenas trazer o foco para as falhas em nossas respostas sociais atuais, mas também propor caminhos para uma sociedade mais inclusiva e compreensiva, onde a neurodiversidade seja verdadeiramente valorizada.

Trago destaque a dois transtornos em específico, por eles serem os de maior visibilidade e proliferação nas redes – some a isso, uma massiva desinformação – e também pela vivência pessoal com cada um deles.

Afinal, em linhas gerais, o que Autismo e TDAH?

Autismo, formalmente conhecido como Transtorno do Espectro Autista (TEA), é uma condição de desenvolvimento neurológico caracterizada por desafios na comunicação e interação social, além de padrões de comportamento, interesses ou atividades restritos e repetitivos. O espectro autista abrange uma ampla gama de habilidades e desafios, refletindo a diversidade de experiências entre as pessoas autistas. Os critérios diagnósticos, conforme estabelecidos pelo DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5ª edição), enfatizam a necessidade de observar déficits persistentes em cada uma dessas áreas, variando de leves a severos, sem uma expectativa única de como o autismo se manifesta. Por padrão, o Autismo tem em sua classificação os níveis de suporte 1, 2 e 3, que não refletem uma escala de “mais leve ao mais severo”, mas sim, o conjunto de suportes e impactos no funcionamento do individuo.

TDAH, ou Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade, é uma condição neurológica que afeta a auto-regulação e as funções executivas, o que pode resultar em dificuldades de atenção, impulsividade e, em muitos casos, hiperatividade. O TDAH é diagnosticado com base em um padrão de atenção desatenta e/ou hiperatividade-impulsividade que interfere no funcionamento ou desenvolvimento, conforme descrito pelo DSM-5. Existem três subtipos reconhecidos: predominantemente desatento, predominantemente hiperativo/impulsivo e o tipo combinado, refletindo a diversidade nas manifestações do TDAH.

Em ambos, a desmistificação de diversos mitos e equívocos é crucial para promover uma compreensão mais precisa e empática do Autismo e do TDAH. A conscientização e a educação baseadas em evidências científicas são ferramentas poderosas para combater estigmas e fomentar um ambiente de aceitação e apoio para pessoas neurodivergentes. Ao reconhecer e valorizar a diversidade dentro do espectro autista e as várias manifestações do TDAH, podemos dar passos significativos em direção a uma sociedade mais inclusiva.

O estudo “A comparative study of the structural stigmatisation of ADHD and autism spectrum disorder in Flemish newspapers” por Baeyens et al. examina a cobertura negativa predominante de TDAH e TEA em jornais flamengos. Destaca-se a necessidade de corrigir representações negativas e imprecisas, apontando para a influência da estigmatização na percepção pública e no acesso a cuidados adequados para essas condições.

“Pronto! Agora virou moda. Todo mundo tem um pouco…”

A era digital trouxe consigo uma onda sem precedentes de conscientização e discussão sobre temas relacionados à saúde mental e à neurodiversidade. Autismo e TDAH, em particular, têm sido foco de intensa atenção por parte da mídia e nas redes sociais, transformando-se em tópicos frequentemente debatidos e compartilhados. Essa visibilidade pode ser vista como duplamente benéfica: por um lado, aumenta a conscientização e pode incentivar o diagnóstico e o apoio precoces; por outro lado, corre-se o risco de transformar questões complexas de neurodiversidade em tendências passageiras ou “modas”.

A “moda” dos diagnósticos e discussões sobre neurodiversidade frequentemente simplifica demais condições intrinsecamente complexas, levando a uma compreensão superficial do que realmente significa ser neurodivergente. A facilidade com que informações – nem sempre precisas – circulam nas redes sociais pode contribuir para a difusão de estereótipos e informações errôneas, criando uma narrativa simplificada que não faz jus à diversidade de experiências vividas por pessoas autistas e com TDAH.

Consequências do Estigma

A popularização e a moda em torno do Autismo e do TDAH têm consequências diretas sobre o estigma associado a essas condições. Estereótipos e simplificações emergem como subprodutos dessa tendência, prejudicando significativamente a percepção pública e a autoimagem das pessoas neurodivergentes.

Exemplos de Como o Estigma Prejudica:

  • Percepção Pública: A representação midiática frequentemente se concentra em extremos – ou romantizando a neurodiversidade como uma fonte de habilidades “super-humanas” ou pintando-a como uma deficiência severa. Essas narrativas extremas falham em capturar a realidade da neurodiversidade, levando a uma compreensão distorcida que pode isolar ainda mais as pessoas neurodivergentes.
  • Autoimagem: Para indivíduos autistas e com TDAH, a inundação de estereótipos e informações imprecisas pode afetar a maneira como veem a si mesmos e seus lugares no mundo. A internalização de visões estigmatizadas pode levar a desafios de autoestima e identidade, especialmente quando as representações populares não refletem suas experiências vividas.
  • Simplificação de Diagnósticos: A moda também pode levar a uma banalização do processo de diagnóstico, sugerindo que qualquer um que se desvie ligeiramente do padrão neurotípico possa ser rapidamente rotulado como autista ou com TDAH. Essa simplificação não apenas desvaloriza as experiências daqueles que vivem com essas condições, mas também pode sobrecarregar os recursos de suporte destinados a auxiliar as pessoas verdadeiramente afetadas.

Em suma, enquanto a visibilidade aumentada poderia ser uma força para o bem, promovendo a inclusão e a compreensão, a tendência de tratar a neurodiversidade como uma “moda” contribui para o estigma, reforçando barreiras ao invés de derrubá-las. Desafiar esses estigmas requer um compromisso com a precisão, a empatia e uma compreensão mais profunda das nuances da neurodiversidade.

O que ficam são os impactos dessa Estigmatização

A estigmatização de condições neurodivergentes como o Autismo e o TDAH tem implicações profundas, estendendo-se além da esfera social para impactar negativamente o acesso à educação, emprego e serviços de suporte, além de ter efeitos deletérios sobre a saúde mental dos indivíduos afetados.

Educação: Na esfera educacional, o estigma pode levar a expectativas reduzidas por parte dos educadores em relação às capacidades dos estudantes neurodivergentes. Isso pode resultar em falta de acesso a recursos educacionais adequados, apoio personalizado e oportunidades de aprendizado enriquecedor. O estigma frequentemente impede a implementação de estratégias de ensino inclusivas, limitando o potencial desses alunos para alcançar seu pleno desempenho acadêmico e social.

Emprego: No mercado de trabalho, preconceitos e estereótipos podem criar obstáculos significativos para pessoas neurodivergentes. Desde o processo de seleção, onde a divulgação de sua condição pode levar à discriminação, até o ambiente de trabalho, onde a falta de compreensão e acomodações adequadas podem prejudicar sua produtividade e bem-estar. Isso não apenas limita as oportunidades de emprego para indivíduos neurodivergentes, mas também priva o mercado de trabalho de suas habilidades e perspectivas únicas.

Serviços de Suporte: O estigma associado ao Autismo e ao TDAH também pode dificultar o acesso a serviços de suporte adequados. Isso se deve, em parte, à hesitação em buscar ajuda por medo de ser estigmatizado e à falta de serviços projetados para atender às necessidades específicas das pessoas neurodivergentes. Como resultado, muitos indivíduos podem não receber o suporte necessário para navegar efetivamente em suas vidas diárias e alcançar seu potencial.

Saúde Mental

O estigma em torno do Autismo e do TDAH pode ter impactos devastadores sobre a saúde mental dos indivíduos afetados. A internalização do estigma pode levar a:

  • Baixa autoestima: A percepção constante de ser inadequado ou “diferente” pode minar a autoestima, levando a sentimentos de inadequação e fracasso.
  • Isolamento: O medo de ser julgado pode levar à retirada social, isolando indivíduos neurodivergentes de suas comunidades e potenciais redes de apoio.
  • Ansiedade e Depressão: A luta contínua contra o estigma e a discriminação pode aumentar o risco de ansiedade e depressão, exacerbando os desafios enfrentados por pessoas com Autismo e TDAH.
  • Estresse: Lidar com mal-entendidos constantes e a necessidade de esconder sua verdadeira identidade para evitar o estigma pode resultar em níveis elevados de estresse crônico.

A estigmatização, portanto, não apenas perpetua desigualdades e injustiças, mas também exerce um custo emocional e psicológico significativo sobre indivíduos neurodivergentes. Superar essas barreiras requer uma abordagem multifacetada que inclua educação, conscientização e mudanças nas políticas para promover a inclusão e o bem-estar de pessoas com Autismo e TDAH

Tá… quais são os caminhos possíveis?

Até aqui, exploramos as complexidades e desafios enfrentados por pessoas neurodivergentes, particularmente aquelas – como eu – com Autismo e TDAH, em uma sociedade que frequentemente privilegia a estigmatização em detrimento da inclusão. Desmistificamos equívocos comuns, destacamos as barreiras criadas pelo estigma e aqui volto a um ponto que parte do óbvio, para uma inclusão mais efetiva precisamos enfrentar o desafio de um tripé básico que sempre voltará para educação, conscientização e políticas públicas de suporte.

A importância de deslocar o foco do estigma para a inclusão não pode ser subestimada. Pessoas neurodivergentes trazem perspectivas únicas, habilidades inovadoras e uma riqueza de criatividade para nossas comunidades e locais de trabalho. Sua contribuição é indispensável para a construção de uma sociedade mais diversificada, resiliente e inovadora. Ao reconhecer e valorizar a neurodiversidade, podemos desbloquear potenciais antes ocultos e fomentar um ambiente onde todos tenham a oportunidade de prosperar.

Apesar de um pouco longo, este artigo serve como uma chamada à ação para todos nós — indivíduos neurodivergentes, profissionais da saúde, educadores, formuladores de políticas e líderes empresariais — para participar ativamente na promoção de ambientes mais inclusivos. É nosso dever coletivo combater o estigma, educar-nos e aos outros sobre a realidade da neurodiversidade e implementar mudanças práticas que apoiam a inclusão em todos os aspectos da vida social.

Cada passo que damos em direção à inclusão não é apenas um avanço para as pessoas neurodivergentes, mas um salto em direção a uma sociedade mais justa e empática para todos onde possamos construir um futuro onde a neurodiversidade seja reconhecida como uma parte vital da tapeçaria humana.

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