Cinema e Séries Relação entre referências e cores no filme Kill Bill (parte2)

Relação entre referências e cores no filme Kill Bill (parte2)

Por Leandro Melo

Hoje vamos dar continuidade ao post Relação entre referências e cores no filme Kill Bill (parte1) que pode ser conferido AQUI no Design Culture. Como dito, no Filme Kill Bill (2003, 2004), dirigido por Quentin Tarantino,  as cores são usadas para fazer referência a estilos, filmes, quadrinhos, pessoas. Este artigo possui o intuito de desvendar e revelar como a cor é aplicada nesse filme. Isso será feito através de exemplos e uma breve análise das referências utilizadas na criação do roteiro e fotografia.

Exemplos de aplicação de cor em Kill Bill

Iremos aqui ilustrar algumas situações em que referências aparecem em Kill Bill, sustentadas pelo uso da cor.

O estudioso Stam lembra que

“os realizadores costumam escolher, ou ser pressionados, a fazer filmes de um certo gênero e “à moda” de certos diretores. Compete a eles decidir entre chamar a atenção para essas influências ou obscurecê-las. Podem apagar as pistas ou citar suas fontes como notas de rodapé cinematográficas” (STAM, 1981, p. 57).

Tarantino, sem receios, escolhe deixar bem claro quais são suas referências, afinal tem como objetivo prestar homenagens e não simplesmente se “apoiar em ombros de gigantes”.

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O amarelo

Inspirado nos filmes de kung fu dos anos 70, o diretor adota para a identidade visual de seu filme o amarelo como cor predominante. Podemos perceber isso claramente, por exemplo, nos cartazes, cenários, iluminação e na roupa de Beatrix Kiddo. Esta indumentária foi inspirada na veste de um dos ícones dos filmes de luta, Bruce Lee, usada no filme O Jogo da Morte, de 1978. Vale lembrar que este foi o último filme de Lee, e que, além disso, não foi finalizado devido à sua morte. Este exemplo mostra uma referência bastante clara, através da cor (o amarelo e as listras pretas). “Esta cor para os japoneses representa a traição e o poder” (Galhardo, 2004), o que condiz com o roteiro do filme.

Comparação entre as roupas das personagens principais em O Jogo da Morte e Kill Bill, respectivamente

Comparação entre as roupas das personagens principais em O Jogo da Morte e Kill Bill, respectivamente

Outro momento de citação do amarelo é quando um monge, que aparece como recepcionista no início do Confronto na Casa das Folhas Azuis, traja uma veste desta cor com faixa preta em ziguezague na cintura. Referência à personagem de quadrinhos, Charlie Brown. Inclusive o monge é chamado por esse nome. Um exemplo, também, de como os universos explorados por Tarantino são variados.

Charlie Brown de Peanuts e de Kill Bill, nessa ordem

Charlie Brown de Peanuts e de Kill Bill, nessa ordem

Preto e branco

No filme há cenas em preto e branco, com estilos diferentes criados a partir da iluminação e do tratamento pós- produção. No caso, vamos citar como exemplo o capítulo final do Volume 1, Confronto na Casa das Folhas Azuis. Nele, a seqüência de luta contra os ‘88 Loucos’ tem as cores substituídas pelo preto e branco.

“Mais do que um recurso estético, Tarantino relembra uma prática muito comum nos anos 70. Para que os filmes de kung fu passassem inócuos pela censura norte-americana, os distribuidores faziam cópias em preto-e-branco das cenas consideradas mais violentas. A falta da cor vermelha do sangue nas telas permitia que os filmes fossem aprovados e exibidos na TV” (VIEIRA, 2004).

Ironia ou não, a versão japonesa do DVD de Kill Bill traz essa cena toda a cores.

Este é um exemplo de como as referências de Tarantino necessitam de amplo conhecimento por parte do expectador para que esse as perceba e entenda.

Western

Um dos gêneros de cinema ao qual Kill Bill faz referência é o western, tanto americano quanto italiano. Com relação à fotografia, esta citação é feita claramente através da paleta de cores. O clima pop q toma a maior parte do filme é substituído por tons terrosos e cores claras, pouco saturadas. Além disso, é possível perceber grande preocupação com a iluminação, produzida com backlights marcantes, bem característicos do gênero. Uma cena na qual se percebe claramente o uso destes recursos é no primeiro capítulo do Volume 2, Massacre em Two Pines, que mostra o ensaio da noiva.

Comparação entre fotografias de Rastros de ódio e Kill Bill

Comparação entre fotografias de Rastros de ódio e Kill Bill

Recurso semelhante usado em Era uma vez no Oeste e Kill Bill

Recurso semelhante usado em Era uma vez no Oeste e Kill Bill

Flashback Laranja

Aqui, um exemplo onde a presença da cor é de extrema importância para caracterizar a referência. No início da cena de luta dos ’88 Loucos’, é mostrado um close-up dos olhos de Beatrix  seguido por um flashback laranja amarelado do massacre. Essa cena é referência direta ao filme A Morte Anda A Cavalo de Giulio Petroni. É uma situação na qual, caso não tivesse sido utilizada a cor, a referência não se caracterizaria claramente.

Semelhança na aplicação de cor em A morte anda a cavalo e Kill Bill

Semelhança na aplicação de cor em A morte anda a cavalo e Kill Bill

Outra cena na qual o laranja aparece de maneira marcante, deixando claro o gosto de Tarantino pelas cores exuberantes, é uma cena onde Beatrix sobrevoa um céu alaranjado. Ao retomar o céu alaranjado presente no filme Goke é notório a preocupação com a iluminação que dá realismo a uma cena extremamente fantasiosa.

O céu laranja presente durante o voo tanto em Goke quanto em Kill Bill

O céu laranja presente durante o voo tanto em Goke quanto em Kill Bill

Lady Snowblood

Para finalizar, uma das principais inspirações para a criação da história da personagem O-Ren Ishii e mesmo de todo o roteiro do filme; a produção cinematográfica Lady Snowblood de 1973. Essa inspiração não se restringe à história; a fotografia também é influenciada por essa obra. Isto fica bastante evidente na cena final do volume 1, na batalha num jardim coberto de neve, onde predomina uma belíssima iluminação. É notório que toda a paleta de cores dessa cena é fiel àquela que a inspira.

 

Jardim iluminado em Lady Snowblood e Kill Bill

Jardim iluminado em Lady Snowblood e Kill Bill

Conclusão

Um dos maiores mistérios da humanidade sempre foi a origem da obra artística. É muito comum, diante do encantamento provocado pelo contato com a obra, se questionar de onde vem a habilidade do artista para desenvolver algo que tanto nos toca. Embora seja uma questão muito complexa, e justamente por isto tão antiga quanto a própria humanidade, se pode perceber um fator concreto que abre caminho para o processo criativo; a cultura.

Em Kill Bill, Quentin Tarantino nos revela uma bagagem cultural enorme, e consegue expô-la de maneira fascinante. Ele demonstra extrema habilidade em costurar referências, e o faz através de artifícios variados, dentre esses, o uso da cor.

Fica evidente como as cores podem ser utilizadas para fazer citações e como, em algumas situações, este recurso chega a ser indispensável para expor as referências ao público de maneira clara. É um exemplo interessante de uma estratégia de aplicação de cores sendo utilizada na fotografia de cinema.

Finalmente, podemos dizer que o uso das cores em Kill Bill deixa claro que não se trata apenas de um filme pop, mas sim um filme sobre e, acima de tudo, em homenagem ao cinema pop.

Referências Bibliográficas

DVD Times. Sítio sobre DVDs. Kill Bill Vol.1. Postado em: 10 abr. 2004. Disponível em: <http://www.dvdtimes.co.uk/content.php?contentid=11082>. Acesso em: 26 abr. 2008.

FIREMAN, Chico. Prato que se come quente. Postado em: 27 abr. 2004 no blog Filmes do Chico. Disponível em: <http://filmesdochico.blogspot.com/2004/04/prato-que-se-come-quente- tarantino.html>. Acesso em: 26 abr. 2008.

FISHER, Bob. Hell hath no fury – Robert Richardson, ASC lights the road to revenge in Kill Bill: Volume 1. International Cinematographers Guild Magazine. Hollywood, EUA, Out. 2003. Disponível em: <http://www.cameraguild.com/magazine/stoo1003.htm>. Acesso em: 30 abr. 2008.

GALHARDO, Stefano B. T. Análise Individual do Material Gráfico. In: A cultura oriental representada nos posters e cartazes para filmes. Rio de Janeiro, 2004. Trabalho acadêmico (Análise Gráfica) – Curso de desenho industrial, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/ednacunhalima/2004_1_2/filmes/index.htm>. Acesso em: 4 abr. 2008.

GARDNER, Ruy. Critica: Kill Bill, Vol.1. In: Em Torno de Quentin Tarantino e Kill Bill Vol. 1. Contracampo – Revista de cinema. Edição 59. Disponível em: <http://www.contracampo.com.br/59/killbill.htm>. Acesso em: 16 abr. 2008.

GOMES, Thiago P. S. A Canibalização do gênero. In: Traços de intertextualidade no cinema norte-americano contemporâneo. Rio de Janeiro, 2006. p. 13. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em cinema) – Universidade Estácio de Sá. Disponível em: <www.estacio.br/graduacao/cinema/tcc/Trab%20Int%20TCC%20ThiagoPi ntoSardembergGomes.pdf>. Acesso em: 16 abr. 2008.

G-Sat. Fórum de discussões. Postado pelo usuário vander em: 27 mar. 2008. Disponível em: <http://forum.g-sat.net/showthread.php?t=151960>. Acesso em: 27 abr. 2008.

SoBReCarGa. Revista eletrônica sobre entretenimento jovem. Kill Bill: Volume 1. Postado pela equipe em: 22 abr. 2004. Disponível em: <http://www.sobrecarga.com.br/node/view/2335> Acesso em: 27 abr. 2008.

____. Kill Bill: Volume 2. Postado pela equipe em: 7 out. 2004. Disponível em: <http://www.sobrecarga.com.br/node/view/3708>. Acesso em: 27 abr. 2008.

STAM, Robert. O espetáculo interrompido – Literatura e cinema de desmistificação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. p.57

VIEIRA, Camila. Doses vermelhas de vingança. Blog Imagem em Movimento. Postado em: 10 jul. 2004. Disponível em: <http://imagem_em_movimento.blogspot.com/2004/07/kill-bill-volume-i- kill-bill-volume-i.html>. Acesso em: 04 abr. 2008.


As imagens do post são cenas de filmes e têm direitos reservados à suas respectivas produtoras e distribuidoras:

A MORTE ANDA A CAVALO (Da uomo a uomo). Itália, 1967. Direção: Giulio Petroni
ERA UMA VEZ NO OESTE (C’era Una Volta Il West) Itália/ EUA, 1968. Direção: Sergio Leone
GOKE: BODY SNATCHER FROM HELL (Kyuketsuki Gokemidoro) Japão, 1968. Direção: Hajime Sato
KILL BILL: VOL. 1 (Kill Bill: Vol. 1) EUA, 2003. Direção: Quentin T arantino
KILL BILL: VOL. 2 (Kill Bill: Vol. 2) EUA, 2004. Direção: Quentin T arantino
LADY SNOWBLOOD (Shurayukihime) Japão, 1973. Direção: Toshiya Fujita
O JOGO DA MORTE (Game of Death) Hong Kong / EUA, 1978. Direção: Robert Clouse
RASTROS DE ÓDIO (The Searchers) EUA, 1956. Direção: John Ford

 

*Trabalho escrito por mim, Leandro Augusto Melo, em conjunto com Joe Lopes Reis Filho e Luiz Eduardo Bertoletti como trabalho acadêmico do curso de design da PUC-Rio.

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