Uma distópica Miami assolada por enchentes e insolação é o palco da desolação necessária para que a nostalgia se torne um serviço com apelo comercial. Nick Bannister (Hugh Jackman), um veterano de guerra, ao lado da também ex-combatente Watts (Thandiwe Newton), oferecem o serviço de imersão tecnológica no próprio passado do interessado, para que possa passear tranquilamente sobre os melhores momentos de sua vida. A justificativa para tamanho apego ao pretérito é o colapso social e humano que a sociedade está imersa, o que torna as lembranças e os hologramas formas mais seguras e emocionalmente reconfortantes de se viver.
A proposta do roteiro do filme oferece justificativas plausíveis à trama e um contexto social que leva em conta as diferentes formas de lidar com provações a partir das classes econômicas. A roteirista e diretora Lisa Joy (ninguém menos do que a produtora executiva de Westworld desde 2016) brinca com o elemento aquático ao conceber um cenário de naufrágio social em virtude da alta das marés nas cidades costeiras. A submersão parcial de Miami permitiu a criação de um cenário digno de ficção científica noir. Aliado ao aumento das temperaturas, a sociedade inverte o período produtivo para a noite, fazendo com que todos acordem ao pôr-do-sol e encerrem a jornada diária com o raiar do outro dia. O excesso de cenas noturnas permite o uso amplo de jogos de luzes que são eficientes em ambientar o clima de falta de esperança no qual todos vivem.
Todavia, a grande busca do filme é pela misteriosa Mae (Rebecca Ferguson), que depois de um breve romance com Nick Bannister desaparece sem deixar rastros. A angústia de Nick o leva a reviver suas memórias românticas reiteradas vezes, e a menor das pistas sobre o paradeiro de Mae é motivo suficiente para que o veterano arrisque sua vida para obter respostas.
Aqui temos o problema do longa. Curiosamente, a primorosa ambientação das cidades alagadas e noturnas com seus trens sobre águas e barcos e a corrupção dessa sociedade parecem muito mais realistas do que os motivos que levaram Nick a procurar por Mae. O CGI mostrado na tela é, de fato, digno de Imax, mas o romance proposto repercute como desproporcional, exagerado e ressentido. Mesmo concedendo o crédito da nostalgia como plano de fundo do roteiro, esta parte do filme foi uma potencialidade não atingida e esvaziada de lógica em muitos pontos. Não se trata apenas da crítica ao romance envolvendo o casal, mas todos os desdobramentos que ocorrem (e que são a história do filme) por conta do afastamento da cantora misteriosa.
A atuação de Jackman e Ferguson não é o principal problema, mas parece que entregaram a atores corajosos um roteiro parcialmente bom. É válido lembrar que a dupla já atuou como casal no musical em que Ferguson encanta Jackman por causa da voz – O Rei do Show (2017). Especialmente quanto a Hugh Jackman, sua atuação está em um nível excelente. Dá para medir a transformação do personagem a partir da mudança de entonação de uma fala repetitiva que ele utiliza para iniciar o processo de adormecimento das pessoas que irão reviver memórias. Nenhuma nuance de Nick Bannister lembra o aspecto caricato de Wolverine, nem quando o passado militar vem à tona (um feito não conquistado por Johnny Depp após Jack Sparrow, por exemplo). Quanto à versão femme fatale de Ferguson, o exalo excessivo de sensualidade dificulta um pouco o aprofundamento da personagem e contribui com a confusão que o filme cria. Havia pólvora, mas o tiro saiu pela culatra.
Por outro lado, ponto positivo para a química da dupla de trabalho Nick e Watts, que sabem ser ombro amigo e dedo em riste para todas as horas. A amizade funciona como mola para apaziguar as memórias da guerra e a parceria de trabalho auxilia no enfrentamento às questões pessoais relativos às memórias de cada um. Aqui, a interação foi bem construída e executada. Os atores mostram sintonia na tela e conseguem despertar emoções na plateia.
Pelo exposto, pode-se dizer que Caminhos da Memória é um excelente filme para se ver porque é quase tecnicamente perfeito, mas o espectador que buscar justificativa para o desenvolvimento da trama se frustra um pouco. A qualidade de imagem (esqueça o granulado da primeira tomada aérea), efeitos, iluminação, cenografia e a forma como brincam com os ambientes inundados entrega cenas facilmente relembráveis. Contudo, nem o aprofundamento com poderosos e criminosos (e as reflexões críticas que derivam desse núcleo) apagam o baixo impacto do envolvimento amoroso que deveria sustentar o fio narrativo. É uma ideia brilhante com problemas na execução, mas ainda assim, continua valendo a ida ao cinema.
Caminhos da Memória (Reminiscence) estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, 19 de agosto. Confira o trailer: