Publi e MKT Não podemos nos calar

Não podemos nos calar

Por Arths

Eu vejo o preconceito nas agências de publicidade. Nas mãos de seus clientes. Eu vejo a cultura do estupro na TV. Eu vejo um país que é vítima. Sempre vítima. E não quero ser chato não, essa semana eu ia escrever um texto divertido sobre o dia da toalha, que aconteceu na última quarta-feira, e sobre a genialidade do grande Douglas Adams. Mas quando você vê uma menina sendo estuprada por 33 indivíduos fica difícil fazer piada, muita coisa vem à mente.

Quero começar o assunto tratando de um outro tema, que também é pertinente. Durante anos reparei dentro das agências de publicidade a falta de pessoas negras, e se você reparar bem, talvez você perceba isso também. Não é coincidência, não é mero acaso. É sim uma constatação muito deprimente. E nos trabalhos que realizamos, ah, esses realmente trazem essa verdade à tona de uma forma gigantesca.

Aposto que você já ficou impressionado em quão difícil é encontrar num banco de imagens pessoas negras não é? E quando você faz algum trabalho e alguém fala “pô, só tem gringo branquelo nisso aí, coloca a cota aí no meio”. A cota. Isso mesmo, e já ouvi muitas vezes essa expressão. Aquela coisa tipo power rangers que tem uma pessoa de cada etnia só pra mostrar que você não é preconceituoso. Mas é!

Comecei falando de estupro e estou agora falando do preconceito racial, mas calma lá, vou chegar ao ponto. Quero contar antes uma das histórias que aconteceu comigo, só para ilustrar. Há dois anos eu trabalhava em uma agência focada no setor automobilístico, e um de nossos clientes solicitou um e-mail mkt para o dia do balconista. Fiz a arte e nela coloquei uma mulher, e ainda por cima negra. Fiz isso conscientemente pensando “vai ser reprovado, especialmente por ter uma mulher, mas também por ela ser negra”.

Imagens: Shutterstock

Imagens: Shutterstock

Não deu outra, a reprovação veio rápido e até considerei insistir na ideia mas logo percebi que seria perda de tempo. Não que o cliente tivesse comentado nada a respeito, mas no fundo você sabe, e não dá pra dizer que não é assim. Acabei trocando a imagem, coloquei um carinha feio, careca e branco, sem graça. Ficou muito menos bonito que antes, mas foi aprovado.

Quase todos os dias eu conversava a esse respeito com meu ex-chefe, que é negro, especialmente quando tentávamos quebrar alguns tabus do mercado em relação a preconceito racial e de gênero. Eram conversas ótimas que me enriqueceram muito, e me conscientizaram muito também. Ele dizia que esse preconceito todo, que eu pensava não existir, esta lá o tempo todo, só nunca me atingiu antes. O mesmo vale sobre minhas conversas com minha namorada a respeito de machismo. Enfim, quase nunca dava certo implementar ideias mais inclusivas e muitas vezes tive que ver clientes aprovando trabalhos menos “bonitos” ou coerentes simplesmente por isso. Finalmente o preconceito contra as mulheres, contra os negros e todos os outros tipos de preconceitos estúpidos começou a me atingir forte, e me assustei com essa realidade. Claro que nada ficava explícito, mas como eu disse, no fundo você sabe.

Vou falar um pouco sobre campanhas de cerveja (SIM, mais uma vez). Vamos tomar como exemplo essas campanhas e para isso você pode citar qualquer marca. Quase a totalidade já fez – ou ainda faz – campanhas onde a mulher é tida como um objeto – ou um objetivo – a ser alcançado e dominado pelo homem. Um fetiche, um brinquedo, um incômodo, uma serviçal, um mero coadjuvante da potência masculina.

Imagem: Divulgação

Não são somente as empresas fabricantes de cerveja que possuem uma abordagem sexista para vender seus produtos, obviamente, mas todos nós sabemos o quanto foi explorada essa questão da mulher como objeto durante tantos e tantos anos. Não quero afirmar aqui que a propaganda de cerveja seja responsável pela criação dessa cultura machista, mas é sim um reflexo dela. Nós acabamos ao longo do tempo nos acostumando com a “brincadeira” da malandragem, da tiração de onda e da fetichização da mulher ao longo de muitos e muitos anos. Hoje podemos ver nas notícias o resultado dessa irresponsabilidade.

Há muitos anos não assisto TV, nem tenho em casa, mas ouço falar e vejo notícias na internet sobre muitos programas que incentivam e endossam o papel da mulher como um objeto, um estereótipo. Todo mundo reclama que na TV só tem bunda, mas todo mundo liga a TV justamente pra ver isso, ou pelo menos não se importa em ver, ou ouvir apresentadores falando asneiras tão grandes que dá vontade de chorar. Rafinha Bastos e Danilo Gentili que o digam.

Num país onde o Ministro da Educação faz reuniões com o ator pornográfico Alexandre Frota, figura extremamente polêmica e escusa, cabe a nós refletir sobre o rumo que queremos que nosso país tome, para que acontecimentos como o da menina estuprada essa semana não aconteçam mais. Temos que nos indignar, nos revoltar. Essa verdade tem que doer, lá no fundo, pra que reflita em nossos dias, para tentarmos construir uma sociedade melhor, para nós e nossos filhos.

Quando este preconceito atinge você, seja diretamente ou indiretamente no seu trabalho, é seu papel lutar contra, é seu papel denunciar. Denunciar o anúncio da TV ao CONAR, boicotar programas de TV que incentivem essa ideologia e, principalmente, se esforçar ao máximo em seu trabalho para conscientizar sua equipe, seus clientes, que todos nós devemos mudar um pouquinho a cada dia essa situação. Não só pelo dinheiro, pelo buzz, ou pela hipocrisia das “cotas”, para tornar sua propaganda engajada, escondendo o preconceito latente de muitos anunciantes. Não. Temos que lutar para que a indústria e a sociedade alcancem juntas a tão desejada justiça social.

Tive o desprazer de ir a algumas feiras do setor automotivo, e você como Diretor de Arte, Diretor de Criação, etc provavelmente vai ter que participar de eventos onde verá muitas mulheres seminuas, as chamadas “ficha rosa”, verá seus clientes contratarem somente promotoras mulheres, porque são atraentes. Quanto mais olhamos para esse lado, mais percebemos que o caso do estupro não é algo isolado, uma exceção. Ele acontece todos os dias, aos pouquinhos, e cabe a você escolher se vai lutar contra ou se vai fazer parte. Vai uma gelada ai?

Imagem: Divulgação

Imagem: Divulgação

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