Quando o marketing veste a política: A polêmica da camisa vermelha da Seleção Brasileira

Quando o marketing veste a política: A polêmica da camisa vermelha da Seleção Brasileira

Por Manuel Costa

A camisa da Seleção Brasileira de Futebol sempre ocupou um lugar simbólico central no imaginário nacional, representando não apenas a paixão pelo esporte, mas também um ideal de identidade e orgulho coletivo. No entanto, nos últimos anos, esse símbolo vem sendo progressivamente ressignificado em função das tensões políticas e sociais que polarizam o Brasil. A tradicional camisa amarela passou a ser associada a manifestações pró-governo durante a gestão de Jair Bolsonaro, gerando desconforto em parcelas da população e levando ao esvaziamento simbólico do que antes era um emblema de unidade.

É nesse contexto de forte carga ideológica que surge uma nova polêmica: a possível adoção de uma camisa número dois, na cor vermelha, para a Seleção Brasileira. Enquanto para alguns trata-se de uma homenagem legítima aos povos originários do país e à árvore pau-brasil, cuja seiva avermelhada remete diretamente ao nome da nação, para outros essa mudança representa um aceno à esquerda política ou mesmo uma tentativa velada de alinhamento com ideologias progressistas, notadamente o comunismo, dado o histórico simbólico da cor vermelha. A controvérsia reacende o debate sobre o uso de elementos culturais em estratégias de marketing esportivo, revelando como a comunicação visual pode ser instrumentalizada tanto por interesses comerciais quanto políticos.

Neste artigo, analisamos a trajetória dessa polêmica à luz da história recente da apropriação simbólica da camisa da Seleção, o papel das cores na comunicação e na neurociência do consumo, e os dilemas éticos e estratégicos enfrentados por instituições que buscam dialogar com múltiplos públicos em um ambiente de polarização extrema. Por fim, questionamos se a escolha da cor vermelha é, de fato, uma genuína homenagem à cultura brasileira ou mais um episódio de capitalização simbólica sobre um país dividido.

A Apropriação Política da Camisa da Seleção

A controvérsia em torno da camisa vermelha da Seleção Brasileira não ocorre de forma isolada. Ela é reflexo de uma complexa interseção entre marketing esportivo, identidades políticas e percepção simbólica das cores, em um país profundamente polarizado. Para entender esse fenômeno, é necessário contextualizar historicamente o uso da camisa da Seleção como instrumento de mobilização política e analisar os fundamentos neurocientíficos que regem a maneira como o cérebro humano responde a estímulos visuais, especialmente em contextos de disputa narrativa.

Durante o governo Jair Bolsonaro (2019–2022), a camisa amarela da Seleção Brasileira foi intensamente utilizada por apoiadores do presidente em manifestações públicas, atos pró-governo e eventos de viés conservador. Tal apropriação simbólica deslocou o significado da peça: de um item meramente esportivo e identitário, ela passou a funcionar como signo político, gerando reações adversas de setores que não se reconheciam na pauta bolsonarista. A apropriação de símbolos nacionais por movimentos políticos é uma estratégia antiga no campo da comunicação eleitoral, pois facilita a identificação imediata e emocional entre a imagem do candidato e a ideia de pertencimento à nação (PANKE, 2016).

A introdução de uma nova camisa da Seleção, predominantemente vermelha, reacendeu esse conflito simbólico. O vermelho, amplamente associado a movimentos de esquerda em diversas partes do mundo, como o Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil ou os regimes comunistas do século XX, carrega uma forte carga semântica que transcende a estética. Ainda que a justificativa oficial da Nike e da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) seja homenagear os povos originários e a árvore pau-brasil, setores da direita e da extrema direita viram na escolha uma tentativa de reverter a narrativa simbólica hegemonizada nos últimos anos.

Sob a ótica da neurociência do consumo, as cores desempenham um papel fundamental na ativação de respostas emocionais e comportamentais. De acordo com estudos de Paul Zak e Antonio Damasio, estímulos visuais relacionados a memórias afetivas e valores culturais provocam respostas do sistema límbico, especialmente no eixo amígdala–hipotálamo, que influencia processos decisórios inconscientes. O vermelho, por exemplo, é reconhecido como uma cor que estimula atenção, urgência, poder e, em contextos específicos, agressividade ou paixão. Essa resposta neurofisiológica é amplamente explorada tanto em publicidade quanto em campanhas eleitorais, que buscam gerar engajamento imediato por meio de estímulos visuais com forte carga emocional.

Na comunicação política, especialmente em contextos eleitorais, o uso das cores vai além da estética: trata-se de uma estratégia narrativa. Segundo George Lakoff (2004), autor de “Não pense em um elefante”, marcos mentais (frames) são ativados por símbolos culturais que evocam valores e crenças. A escolha de uma determinada cor em um produto nacional como o uniforme da Seleção, portanto, é capaz de ativar frames políticos e ideológicos específicos, mesmo quando a intenção declarada é cultural ou comercial. No Brasil atual, em que o ambiente discursivo é altamente polarizado, qualquer elemento simbólico pode ser interpretado como ato de alinhamento ideológico, gerando reações em cadeia nas redes sociais, na imprensa e na esfera pública.

A adesão ou rejeição à nova camisa não se dá, portanto, apenas com base na estética ou no gosto pessoal, mas está profundamente ancorada em processos cognitivos e emocionais que relacionam símbolos visuais à identidade, pertencimento e posicionamento político. Nesse cenário, empresas como a Nike, ao desenvolverem produtos com forte carga simbólica, tornam-se, ainda que indiretamente, participantes do debate político contemporâneo. É o que Naomi Klein (2000) define como “branding cultural”, onde as marcas deixam de vender apenas produtos e passam a vender significados, valores e pertencimentos.

Por fim, essa discussão revela como o consumo, mesmo quando voltado ao entretenimento esportivo, está cada vez mais entrelaçado com o campo político e social. A camisa vermelha da Seleção, antes de ser vestida por jogadores, já foi revestida de narrativas, disputas e interpretações – reflexo de um país onde até os símbolos esportivos precisam escolher um lado.

Afinal, qual o problema de fato?

A adoção da camisa vermelha como uniforme alternativo da Seleção Brasileira de Futebol transcende a esfera esportiva e se insere em uma paisagem sociopolítica marcada por disputas simbólicas e polarizações identitárias. Em uma nação historicamente tensionada entre projetos de poder opostos, até mesmo uma peça de vestuário se torna palco de embates ideológicos, nos quais consumidores, políticos, formadores de opinião e marcas disputam a hegemonia narrativa.

A análise aqui proposta demonstra que, tanto do ponto de vista da comunicação política quanto sob a ótica da neurociência do consumo, a cor vermelha é carregada de significados culturais, históricos e emocionais e, assim como outras cores jamais será neutra. Ao contrário, ela ativa repertórios simbólicos profundos, que envolvem identidade, afiliação partidária, pertencimento étnico e resistência social. Assim, é natural que a sua aplicação em um uniforme com forte valor patriótico e emocional gere reações intensas, tanto de acolhimento quanto de rejeição.

A justificativa institucional da CBF e da Nike é de que a nova camisa homenageia os povos originários do Brasil e o pau-brasil, árvore que deu nome ao país, o que é legítima e culturalmente relevante. No entanto, não se pode ignorar que a escolha do vermelho, em meio a um cenário nacional fortemente polarizado, carrega consigo o risco (ou a intencionalidade comercial) de ser percebida como um gesto político. Essa ambiguidade de intenções levanta um questionamento central: trata-se de uma iniciativa genuína de valorização da diversidade e da ancestralidade brasileira ou de uma estratégia de marketing calcada na exploração de tensões sociopolíticas contemporâneas?

Nesse sentido, mais do que buscar respostas unívocas, é necessário promover uma reflexão crítica sobre o papel das marcas, dos símbolos nacionais e dos dispositivos comunicacionais em uma democracia. Em uma sociedade em que tudo comunica, é fundamental que o consumo cultural, esportivo ou comercial seja analisado também sob a ótica de suas implicações ideológicas e afetivas. A camisa vermelha da Seleção, portanto, é mais do que um uniforme: é um espelho das contradições, esperanças e conflitos de um Brasil em disputa.

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