Cinema e Séries O maravilhoso agridoce de Green Book: O Guia

O maravilhoso agridoce de Green Book: O Guia

Por Erica Oliveira Cavalcanti Schumacher

Soa altamente irônico pensar em um filme que comporte imensas cargas cômicas e dramáticas ao mesmo tempo. Curiosamente, essa é a receita que fez Green Book: O Guia se tornar um dos campeões de indicações ao Oscar 2019 e o favorito para levar a estatueta de melhor filme. Inicialmente, cumpre esclarecer que Green Book é o nome de um guia turístico com dicas de hotéis e restaurantes bastante parecido com o que se vê no dia-a-dia dos turistas mundo afora, exceto por um triste detalhe: o livro verde indicava onde pessoas negras poderiam se hospedar, fazer refeições ou até mesmo serem atendidas nos lugares onde a segregação racial era uma realidade nos Estados Unidos da década de 60.

Quando o pianista Don Shirley (Mahershala Ali, vencedor do Oscar 2016 por Moonlight e indicado novamente este ano) aceita sair em uma turnê nacional pelos EUA em 1962, fica claro para a sua gravadora que o músico necessita de um motorista apto a enfrentar comportamentos preconceituosos em cada esquina do país e que seja capaz de lidar com pessoas de todos os tipos para garantir que Shirley possa cumprir a agenda de 2 meses de apresentações. A melhor pessoa para isso é um segurança de boate de ascendência italiana que, para estranheza geral, traz consigo uma bagagem de racismo nas costas, mas precisa aceitar o emprego em razão das dificuldades financeiras de sua família.

A improvável dupla formada por Shirley e Tony Vallelonga (Viggo Mortensen, o eterno Capitão Fantástico – se não viu, veja!) atravessa diversos Estados americanos e à medida que a quilometragem se contabiliza, fica visível que não poderia haver pessoas mais diferentes uma da outra que o distinto pianista e seu motorista falador.

A genialidade do roteiro apresenta as situações mais cômicas possíveis entre ambos (nenhuma surpresa, já que o diretor Peter Farrelly tem em seu histórico títulos como O Amor é Cego, Eu, Eu Mesmo e Irene e Debi e Lóide), mas com dolorosas agulhadas do preconceito que circundava os mínimos detalhes da vida estadunidense na década de 60. Para aliviar o choque, Ali e Mortensen formam um dos melhores pares cinematográficos dos últimos tempos, tornando Green Book quase viciante, o que rendeu indicações ao Oscar para os dois, sendo Mortensen por Ator e Ali por Ator Coadjuvante.

Detalhes técnicos neste longa não merecem tanto destaque, não há muito que se falar em efeitos visuais ou sonoros, figurino, maquiagem ou surpresas de direção de arte. Longe de ser um comentário denegridor, confirma que o fio condutor formado pela trama é todo o necessário para que se tenha uma experiência inesquecível no cinema. As apostas tendem a confirmar que Green Book figurará como a versão masculina de Histórias Cruzadas e de Estrelas Além do Tempo, duas obras eternizadas no cinema sobre as máculas do preconceito e da segregação racial em um sistema absurdo que, ainda que soe como passado secular, está há pouquíssimas décadas de distância dos dias atuais.

Longas desse tipo mostram, por mais doloroso que seja, o triunfo de personagens negras em que a genialidade e o mérito caminham um passo atrás da dosagem de melanina na pele, tornando cada pequeno reconhecimento social um marco na trajetória da universalidade dos direitos igualitários entre os povos. Green Book é devastadoramente triste por certos aspectos e avassaladoramente espirituoso, encantador e magistral no conjunto. Baseado em uma história real, é valioso notar como uma viagem de dois meses rendeu beleza e lições suficientes para que, 57 anos depois, se torne história digna de Oscar (o longa já ganhou o Globo de Ouro de melhor comédia, ator coadjuvante e roteiro).

A tensão entre os personagens traz à tona o melhor e o pior de suas essências. Tony Bocudo é um homem apaixonado por sua imensa família italiana, incapaz de se comportar bem, amante da boa comida e das mais pavorosas piadas. Doutor Don Shirley é um pianista letrado, culto, íntegro e sóbrio, que não peca em nada e faz de sua dignidade pessoal o bem mais precioso que possui. Juntos, Tony e Don são mestres das verdades ocultas um do outro, apresentando o lado oposto da vida e brindando a plateia com uma das mais belas histórias que a programação atual do cinema foi capaz de mostrar.

Green Book estreou nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, 24 de janeiro. Confira o trailer abaixo:

https://www.youtube.com/watch?v=NwyeDErhF2Y

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