Marina Vidal é uma garçonete que agracia sua própria vida soltando a bela voz em casas noturnas, até que se apaixona por um homem muito mais velho que vem a falecer inesperadamente por um aneurisma. Ao tentar lidar com a trágica situação, se vê impedida pela família do namorado de comparecer aos eventos fúnebres porque sua presença é e sempre será rechaçada pelas pessoas.
A premissa do longa mesclaria drama e romance em uma composição usual para o cinema, entretanto, o fato de Marina ser transexual altera todo o panorama da história. Com bastante delicadeza, o diretor Sebastián Lelio (responsável pelo estrondoso Gloria, de 2013, vencedor do Urso de Prata de melhor atriz para Paulina García) transforma situações corriqueiras em pequenas batalhas cotidianas enfrentadas pela protagonista pelo simples fato de ser transexual. O pesar pela morte precoce do namorado é inflamado pelo preconceito da família do falecido em relação a presença controversa de sua então namorada no seio de uma família tradicional. À companheira não é dado o direito de viver o luto da forma como se deve, e o que se espera dela é simplesmente o célere esvaziamento das gavetas para consagrar o desaparecimento dos vestígios de sua vida ao lado de Orlando (Francisco Reyes).
Marina Vidal não perde a dignidade frente aos constrangimentos e humilhações sofridas e tampouco representa estereótipos, e isso só reafirma o talento de Daniela Vega, a atriz chilena transexual que não passou despercebida da crítica mundial por sua atuação esplêndida neste longa, que chegou a ser considerada pelo Variety como um talento a ser observado. Sua delicadeza e feminilidade compõem um valioso arranjo quando mesclado a sua firmeza e autenticidade. Com figurino e maquiagem impecáveis, a intérprete enfrenta o papel de forma verídica e se confunde com a trama, que, embasada fortemente no preconceito contra a comunidade transexual, coloca Marina em uma posição desconcertante, tanto em relação à família de Orlando, como também em relação às investigações sobre sua morte.
A cena de corpo de delito em que Marina é obrigada a se submeter é o auge do drama de ser quem é. O longa narra de forma brilhante como um atributo da personalidade faz nascer a dúvida quanto à credibilidade de uma pessoa em qualquer situação de sua vida, dando a entender que seu sofrimento é menos tocante por causa de sua condição sexual. A falta de empatia possui várias facetas e a violência moral imposta à protagonista é extremamente sutil, tais como a negativa de ser chamada pelo nome social ou os xingamentos diversos proferidos pela família de seu namorado. Ainda assim, Marina persiste sendo suave e contundente ao mesmo tempo. Os mais atentos deverão se esbaldar na sequência em que a protagonista dirige pela última vez o carro de seu namorado ao som de You Make Me Feel Like a Natural Woman¸ de Aretha Franklin.
O tema transexualidade vem sendo discutido de forma mais aberta há algum tempo. O papel de uma transexual rendeu a Eddie Redmayne uma indicação consecutiva ao Oscar pelo tocante A Garota Dinamarquesa (2016), muito embora muitos críticos tenham rechaçado a escolha de um ator e não de uma atriz trans para o papel. Abertos os caminhos no cinema, nas séries (I am Cait), novelas (A Força do Querer), na música e nas artes em geral, a visibilidade da comunidade deve se voltar agora a vivência do preconceito massivo suportado pelos transexuais. Superada a barreira inicial, cabe agora o debate sobre o enfrentamento cotidiano e a mudança de pensamento sobe a forma de lidar com as diferenças na sociedade moderna, que ainda é insistentemente preconceituosa.
Nesse sentido, a missão de Uma Mulher Fantástica é desempenhada perfeitamente ao pôr holofotes sobre o agravamento dos dramas ou a existência de um sofrimento sequer imaginado pela maioria das pessoas sobre situações mínimas na vida das pessoas transexuais. Não à toa, o filme saiu do Festival de Berlim 2017 com os prêmios de Menção Honrosa – Prêmio do Júri Ecumênico – Festival de Berlim 2017 e o Prêmio Teddy – Melhor Filme – Festival de Berlim 2017.
O longa estreia no Brasil em 14 de setembro e é distribuído pela Imovision, a responsável por introduzir no Brasil cinematografias raras e movimentos internacionais expressivos, como o Movimento Dogma 95 e o cinema iraniano, além de ser detentora de filmes premiados nos mais prestigiados festivais de cinema do mundo, como Cannes, Veneza, Toronto e Berlim.
Não deixe de conferir o trailer no link abaixo: