Será que a rotina urbana nos permite sentir o que realmente importa? Será que ainda paramos para perceber o inesperado da vida?
São Paulo, segundo a estimativa de população do IBGE divulgada em 28 de agosto, atingiu 11,9 milhões de habitantes e mantém o status de cidade mais populosa do Brasil.
Em meio a essa densidade, cada gesto sensível surge como uma pequena ruptura no concreto do cotidiano. Sendas em que a atenção respira. É nesse contexto que pequenas ações começam a ganhar sentido. Segurar a porta do elevador para alguém: um movimento automático de atenção que, por um instante, transforma pressa em delicadeza. O olhar rápido, o “obrigado” e, já, se percebe um sinal de encontro. Da mesma forma, ajudar um idoso a atravessar a rua: o toque da mão, o passo desacelerado, o olhar de gratidão. A pressa, por uma breve suspensão, cede espaço ao cuidado. Os gestos se expandem: dar informações a um turista perdido, você é interrompido em seu trajeto, e no esforço de orientar alguém, vê sua própria cidade pelos olhos do outro. Do mesmo modo, oferecer um assento no ônibus: um olhar atento que se encontra com o outro. Um instante de presença em ato de gentileza.
A atenção do próximo também surge ao recolher algo que caiu de alguém e entregá-lo: o ato de devolver uma caneta transforma-se em sensação de alteridade. Assim como compartilhar um guarda-chuva. O corpo se aproxima, divide espaço e tempo. A água que cai é também nuance de estesia.
Até aromas têm o poder de tocar profundamente em meio à rotina. O inteiro se volta para o ar. O cheiro do pão toma conta da rua, irrompe pela calçada, e, por um fragmento de tempo, a pressa cede lugar ao sentimento. Tal como o vizinho que deseja bom-dia: no corredor estreito, o cumprimento inesperado quebra o silêncio dos apartamentos. O ordinário se abre num gesto simples de reconhecimento mútuo. O outro existe. O cantor e compositor pernambucano Lenine, na canção Paciência afirma: “[…] enquanto o tempo acelera e pede pressa, eu me recuso, faço hora, vou na valsa.” São esses instantes que nos retiram da programação, do “cotidiano indiferente”. Momentos em que algo inesperado interrompe o fluxo da vida e abre espaço para novas leituras do real. Interrupções da sequência de atos ordinários. O instante, como descontinuidade do tempo, desvia-nos da linha reta da pressa e da eficiência. É aqui que acontecem as notações somáticas, ou seja, os registros do corpo que revelam como os movimentos e gestos expressam sensações e emoções. Recusar a aceleração é compreender os extremos: excesso (dor) ou esvaziamento (tédio). É nessa dança que seguimos, mesmo sem garantias de que a valsa continuará.
Nessa perspectiva, o semioticista Eric Landowski (2025), em No Risco do Sentido, observa que “um raio de sol ou uma melodia de piano podem, por um momento, mudar o sentido de uma vida”; é a força do entendimento encontrando as palavras certas no exato instante em que permite a mudança interna: uma pequena revolução se instala porque é a força da percepção reorganizando todas as suas possibilidades. É o que há de mais nobre em você emergindo sobre suas limitações. É na mente que ocorre a verdadeira mudança de perspectiva.
À luz de Merleau-Ponty (1908–1961), em Fenomenologia da Percepção, somos lembrados de que o tempo não é linear, mas uma rede de intencionalidades. Perceber uma ocorrência estética é vivenciar um momento de inocência. Não há experiência isolada: cada gesto mínimo é vivido no corpo, no espaço e no outro. Uma vez que o sentido se constitui na diferença, sem a presença do outro a narrativa não se concretiza, tampouco existiria a oposição que impulsiona e transforma. É a partir desse movimento entre sujeito e a diversidade que se pode apreender os “regimes de presença”. Nessa dinâmica, os arranjos do sensível revelam-se justamente quando o fluxo cotidiano se quebra.
Não é o grande acontecimento que nos toca; é um instante, uma fenda de sensibilidade: um olhar, um cheiro, um gesto mínimo que ilumina o vivido. É aqui que nasce o inédito: um pensamento inaugural que não existia antes da quebra do contínuo, do habitual.
E se há uma surpresa, ela está no fato de que, mesmo em meio à pressa de São Paulo, o sensível permanece à espera, pronto para nos lembrar que sentir é existir. Que acreditar nos estados de ânimo e de alma se torne um imperativo para uma nova intimidade do ser com o aumento populacional da “metrópole que não para”.
*Mauri Oliveira é jornalista e radialista. Mestrando em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Pesquisa as potências da linguagem radiojornalística, práticas de escuta e suas relações com a sustentabilidade no Alto Sertão da Bahia.
