Em uma era de algoritmos e curtidas, seguir a maioria nas redes sociais tornou-se uma forma de sobrevivência digital. O chamado efeito manada digital não está relacionado à verdade ou à ciência, mas sim ao impulso humano de pertencimento. O comportamento de se unir a grupos com pensamentos semelhantes é ancestral e agora é amplificado pelas plataformas digitais. Pertencer a um grupo sempre foi sinônimo de proteção e aceitação. Nas redes sociais, isso se traduz na adesão a comunidades, discursos e tendências, mesmo quando envolvem ideias já refutadas, como o terraplanismo. A sensação de integrar um coletivo fortalece vínculos emocionais e pode suprimir a necessidade de questionar racionalmente as informações recebidas.

A ascensão do terraplanismo e outros movimentos como fenômeno digital
O movimento terraplanista é um exemplo claro de como as redes sociais podem fortalecer crenças sem base científica. Embora a teoria da Terra plana tenha sido refutada desde a Antiguidade e, de fato a terra é redonda, ela ganhou novo fôlego no ambiente digital. Antes vista como uma crença marginal, passou a ser organizada, articulada e difundida por influenciadores com presença digital relevante. A necessidade de aceitação sempre guiou decisões humanas. Pertencer a um grupo significava, historicamente, proteção e sobrevivência. Nas redes sociais, essa lógica se traduz na adesão a ideias populares, hashtags em alta e discursos comunitários, mesmo quando eles confrontam fatos científicos.
Esse impulso de integração social leva muitos usuários a aceitar informações já desmentidas, simplesmente por fazerem parte de um “movimento”. E é justamente nessa dinâmica que se encaixa o crescimento de discursos como o terraplanismo. De acordo com pesquisa do Datafolha (2019), 7% dos brasileiros afirmam não acreditar que a Terra seja redonda — um número que representa aproximadamente 11 milhões de pessoas. Esse dado chama atenção não apenas pelo volume, mas pelo potencial de engajamento e mobilização dessas pessoas no ambiente digital. A estratégia de crescimento do terraplanismo nas redes é estruturada e deliberada. Criadores de conteúdo que se autodenominam “especialistas” utilizam:
- Linguagem técnica sem embasamento;
- Elementos de pseudociência;
- Gráficos manipulados;
- Estética de autoridade.
Esse tipo de conteúdo é otimizado para viralizar, e não para informar. Termos como “a verdade que escondem de você” ou “provas que a NASA não quer mostrar” são otimizados para mecanismos de busca, capturando usuários vulneráveis a teorias conspiratórias. Influenciadores terraplanistas dominam técnicas básicas de SEO (Search Engine Optimization) para atrair mais visualizações, tais como, o uso estratégico de palavras-chave de alto volume, títulos apelativos com perguntas e “revelações”, repetição de termos populares nas descrições e hashtags. Essas práticas aumentam a taxa de cliques (CTR) e mantêm o conteúdo bem posicionado nas buscas, alcançando públicos amplos e muitas vezes desinformados.
O papel da psicologia e da neurociência no engajamento
Segundo estudos da Universidade de Harvard e da University College London, o consumo desse tipo de conteúdo ativa regiões cerebrais relacionadas à dopamina, neurotransmissor associado à sensação de recompensa. Curtidas, comentários e compartilhamentos funcionam como reforços positivos que mantêm o usuário dentro da bolha de crença. Tudo isso corrobora com o nosso próximo ponto o Viés de confirmação e conforto cognitivo. De acordo com o psicólogo Daniel Kahneman, autor do best-seller Rápido e Devagar, o viés de confirmação leva as pessoas a aceitarem apenas informações que reforcem suas crenças já existentes. Esse mecanismo reduz o esforço mental e cria zonas de conforto. O algoritmo, por sua vez, potencializa esse viés ao entregar mais do mesmo, criando uma experiência personalizada — e limitada.
Conspirações como identidade social
Mais do que uma crença equivocada, as conspirações oferecem identidade e acolhimento emocional. A narrativa “nós contra eles” fortalece o senso de missão dos adeptos e cria vínculos que dificilmente são rompidos com argumentos científicos. Infelizmente, as plataformas que impulsionam o discurso conspiratório, o algoritmo das redes como YouTube, TikTok, Instagram e Telegram são ambientes propícios para a amplificação de conteúdos conspiratórios, fake news e outros movimentos de pós-verdade, justamente por recompensarem esses conteúdos sem validação com alto engajamento, tempo de visualização e interações polarizadas, e como nosso exemplo, o terraplanismo se insere nesse cenário como um conteúdo que gera tudo isso e mais. O impacto da desinformação e o desafio da verdade nos coloca diante de um problema que não se limita à ignorância, mas a uma estrutura digital que recompensa o sensacionalismo. A verdade, muitas vezes complexa e gradual, perde espaço para conteúdos simples, emotivos e certeiros, mesmo que falsos.

A Solução Vai Além da Informação Correta
Diante do cenário atual, é fundamental compreender que a disseminação de teorias conspiratórias como o terraplanismo não ocorre simplesmente pela ausência de informação confiável. Pelo contrário, vivemos a era da superabundância informacional, e ainda assim, o conhecimento científico muitas vezes é suplantado por narrativas emocionalmente mais sedutoras. A resposta para essa crise não está apenas na produção de conteúdos verdadeiros, mas na estruturação de ambientes digitais que estimulem o pensamento crítico, a dúvida construtiva e a pluralidade de fontes confiáveis. Isso exige uma atuação conjunta entre educadores, pesquisadores, plataformas digitais e formuladores de políticas públicas.
Repensando a Arquitetura da Informação Online
As grandes plataformas digitais operam sob um modelo de negócio que premia o engajamento, não a veracidade. O conteúdo que gera mais reações, independentemente de sua precisão, é promovido pelos algoritmos. Essa lógica, associada a vieses cognitivos como o viés de confirmação, o efeito de ancoragem e o viés de autoridade, cria bolhas informacionais onde teorias absurdas ganham força e legitimidade. Portanto, é urgente revisar não apenas o conteúdo que circula, mas o sistema que o impulsiona. O papel dos algoritmos deve ser repensado, e a transparência no funcionamento dessas plataformas deve ser cobrada como responsabilidade ética e social.
Educação Midiática e Alfabetização Digital
A médio e longo prazo, a ferramenta mais eficaz contra o avanço da desinformação é a educação midiática estruturada. Ensinar crianças, jovens e adultos a interpretar criticamente os conteúdos digitais, a identificar fontes confiáveis, a entender como funcionam os algoritmos e a reconhecer estratégias de manipulação é essencial.
Na opinião de quem escreve esse conteúdo:
“Mais do que oferecer “a verdade”, é necessário ensinar como pensar, e não o que pensar.
O Papel das Lideranças e dos Formadores de Opinião
Profissionais da comunicação, influenciadores, professores, pesquisadores e líderes institucionais têm papel estratégico neste combate. Ao atuarem com responsabilidade, oferecendo conteúdo qualificado e pautado pela ética informacional, tornam-se vetores de uma mudança cultural que valorize a ciência, o diálogo e a dúvida como motor do conhecimento.

A liberdade de pensar ou a confortável ilusão de pertencer?
Neste ecossistema digital saturado de estímulos, likes e validações instantâneas, cabe ao sujeito contemporâneo escolher entre dois caminhos: o pensamento autônomo, que exige esforço, tempo e exposição à complexidade, ou a adesão automática a discursos prontos, que oferecem conforto e pertencimento, mas custam a liberdade de pensar.
O fenômeno do terraplanismo é apenas a ponta de um iceberg muito maior: o da fragilidade cognitiva diante da era da pós-verdade. E nesse contexto, a pergunta que se impõe não é mais se a Terra é plana ou não, mas em que medida estamos dispostos a questionar o terreno onde pisam nossas próprias certezas.